ArtigoColunaCristina Lebregazetanit

Qualquer semelhança é mera coincidência…

O dia era uma segunda-feira ensolarada e quente naquela tarde de inverno de um país tropical. O parque natural mais belo da cidade estava apinhado de famílias celebrando o dia dos avós. As crianças, de férias de meio do ano, curtiam seus vovôs e vovós nos brinquedos, nos lagos com seus patinhos, no chafariz, admirando os peixes. A vida parecia correr tranquila e, embora a maioria das pessoas estivesse usando máscaras, como exigiam aqueles sombrios tempos, dividiam os espaços com gentileza e cuidado, repartindo o gozo daquela tarde abençoada em meio às árvores e canteiros bucólicos cuidadosamente preservados para o deleite da coletividade ordeira, cuja população costumava trabalhar incansavelmente para pagar suas contas e impostos.

Em dado momento, ao ressoar dos sinos que anunciavam as 16 horas daquele dia, do nada sirenes absurdamente altas saíram como que de tocas e começaram a bradar o fim do direito ao lazer supostamente merecido daquela comunidade. Bebês que dormiam em seus carrinhos foram despertados violentamente pelos alarmes estridentes, e chorando magoados estendiam os bracinhos na direção de seus responsáveis. Pequenos nos balanços, escorregas e brinquedos afins começavam a ser bruscamente interrompidos pelas recomendações de seus pais anunciando “crianças, tá na hora de ir embora, 4 horas, vamos nessa. “ Idosos em cadeiras de rodas, que assistiam passivamente ao espetáculo do cotidiano urbano, tiveram suas cadeiras repentinamente movidas por seus cuidadores atentos: “vamos, dona Clara, 4 horas, o parque vai fechar, a polícia está avisando”.

Em menos de quinze minutos as viaturas esvaziaram o parque ao som de seus uivos preparados para assustar e lembrar aos frequentadores, “bóra, minha gente, está na hora de o vírus entrar no parque. “ Nos dois únicos portões abertos, nas laterais do parque – porque as entradas principais permaneciam fechadas – as pessoas se aglomeravam para sair e se livrar daquela zoeira maldita, espremendo-se na calçada estreita e quase passando com seus carrinhos, bicicletas e cadeiras de rodas por cima do pipoqueiro e do vendedor de balões.

Os carros do poder público avançavam na direção das pessoas com suas sirenes grotescas, como uma dona de casa espanta com seus panos de prato as moscas que insistem em pousar sobre o assado, até que todos estivessem devidamente do lado de fora, porque afinal de contas 16 horas é o momento de o vírus entrar: “fim do dia, vão pra casa, arranjem outro lugar para despejar essas crianças porque agora é a hora do vírus”.
Enquanto isso os bares das cidades já estavam abertos até meia noite – enfim, e graças a Deus – os shoppings funcionavam até às 22 horas e os transportes públicos se preparavam para levar um contingente enorme de pessoas saindo de seus trabalhos e compondo a famosa “hora do rush. “ Esses pareciam ser pontos livres das ameaças do vírus.

Para comerciantes de bares e restaurantes, uffa, o vírus havia sido devidamente frustrado em suas ilícitas pretensões. Para os lojistas de shoppings, academias, clubes e afins também não havia mais o que temer, um grande percentual da população já estava vacinado, a orientação era apenas ficar de máscara e manter certo distanciamento. Apenas no parque, um lugar aberto e cujo ar, teoricamente, se renovava naturalmente, é que o vírus permanecia adentrando, diariamente, logo após as 16 horas. Só as crianças é que deviam ser reprimidas em seu direito de brincar ao ar livre, mesmo que elas estivessem de férias, porque afinal de contas infantes atraem vírus e são um perigo para a sociedade…

Ensaio sobre a cegueira, naquele tempo, era só o início do “novo normal”.

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