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Palavras | Cristina Lebre | Endurecer sem se perder – um caminho a seguir

Meu neto completa dois anos neste domingo. E o mistério do tempo que passa se revela em seu sorriso tão doce, em seu olhar tão puro, mas que não é mais de um bebê. Nosso discurso amoroso, para seu incentivo, lhe diz que “está ficando um rapazinho”. E está mesmo, feliz e infelizmente, como tudo nesta vida. Ele nos surpreende com sua fala, repete palavras e articula frases. Não só anda como corre. Mas o derradeiro sinal de sua primeira maturidade é o desmame. Como o ensinou sua mãe, ele “deu tchau pro mamá.”

Perplexa diante do desenvolvimento tão fabuloso do ser humano em míseros dois anos questiono-me sobre como anda o meu coração, e o coração de todos nós, adultos, mais ou menos maduros, pais, profissionais, cidadãos. Meu coração bate suplicando por mais ternura. A mesma ternura que está nos olhos de minha tenra descendência, e que aos poucos vai se dissipando com o passar dos dias, meses, anos. Minha sensibilidade ecoa lá no fundo da caverna de minha alma, “onde está você? Onde está você que anda tão ocupada com a sobrevivência, o trabalho, as contas, os filhos, o perigo estampado nas esquinas escuras? Onde estão seus olhos que somente miram a autoproteção, e só se voltam para a visão dos engarrafamentos, das filas, da burocracia, e se desviam dos mendigos para proteger-se da dor que o drama da existência humana nos impõe?”

A vida não tem nos dado trégua, muito menos por aqui, onde a desigualdade é imensa e a injustiça impera. São literais armas apontadas para nossas cabeças, das quais precisamos nos desviar como gato assustado na noite ao sentir aproximar-se a luz. A tal “qualidade de vida” parece fugir de nós como o diabo foge da cruz. E em meio a essa luta ininterrupta o coração vai endurecendo, batendo descompassado tantas vezes, sendo forçado, moído, esgarçado até suas mais longínquas fronteiras.

Mas ele me fala, sussurra em meus ouvidos por vezes, vociferando em outras. Incomoda-me a parar, sentar na varanda e observar os pássaros que ainda cantam e voam. A olhar a nova flor que desabrocha no meio do vasinho que plantei. E plantei porque meu coração, embora tão endurecido, insiste em se quebrantar. Sim, permanece uma força inexplicável que se abre para os sons e as cores da natureza, e que emerge em lágrimas pela face ao dizer e ouvir um “eu te amo”.

Alegro-me em constatar que minha sensibilidade não foi embora, não deu tchau pro meu coração. Mas sei que é preciso amolecer mais, ainda que por entre as quatro paredes onde estamos enclausurados, sem poder mais andar sem rumo, sentar na areia, assistir de qualquer parte desta tão bela cidade o espetáculo do crepúsculo que o Criador nos oferece com tanto amor todos os dias. É preciso espalhar ternura, simplesmente porque está impossível aguentar tanta dureza. Como um casal no dramático momento do divórcio, desgastado até o limite da constatação da absoluta incompatibilidade, é preciso perdoar. E ainda que não haja reconciliação, manter o respeito.

Não há outra saída para esses tempos tão sombrios. Endurecer sem perder a ternura é nosso desafio diário. Que Deus nos ajude nessa jornada tão difícil quanto fascinante!

Cristina Lebre é autora dos livros Olhos de Lince e Marca d’Água, à venda na Livraria Schöfer, em Icaraí, ou diretamente por lebre.cristina@gmail.com

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