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Um dia (nada) ameno

 

Publicado em 28/01/2017

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Ela acorda, levanta, sai do quarto fresco, entra em uma sala abafada. Ato contínuo adentra a cozinha e liga o ventilador. Deita duas rodelas de limão em um copo d’água, bebe e se dirige à varanda para molhar suas plantinhas, coitadas, às 8:30 h sedentas sob o sol já quente da manhã de um causticante verão carioca. A vista percorre os pequenos vasos de cerâmica, a terra, as folhas. Considera o tom do verde, satisfaz-se com o viço que lhe salta aos olhos e diz consigo mesma: “o hortelã está bom para colher e colocar no suco de abacaxi.” E, delicadamente, tira algumas cheirosas folhinhas.

Tenta sentir paz. Mas não consegue ouvir os pássaros que ainda passam cantando por sua rua nem tão barulhenta. A mente se volta para as notícias da cidade, ao ligar o rádio, enquanto prepara um prato de frutas e cereais: “Criança é atingida por bala perdida no parque onde brincava, e morre”. O coração dispara. Adrenalina corre pelo corpo, provoca um nó no peito. Quem responde por tudo isso? Como assim, pessoas são mortas nas ruas e ninguém assume a responsabilidade? O que o Estado tem a dizer aos cidadãos que sustentam este país?

A adrenalina continua percorrendo os vasos sanguíneos. “Enfermeira é morta na Av. Brasil, ao ser assaltada depois sair de seu plantão em um hospital do subúrbio”. Casada, 31 anos, três filhos pequenos. O tio, em uma entrevista, pergunta como ele vai dizer a duas menininhas, de três e dois anos, que a mãe delas não está mais aqui?

O dia avança, o calor aumenta e os raios do sol queimam cabeças descobertas na rua. Ela ainda espera, mas ninguém do poder público acena com uma resposta, uma medida, uma providência a ser tomada em favor dessas famílias, nem o que está sendo feito, com urgência máxima, para proteger a população da violência que ronda a cidade, a estrada, todo e qualquer caminho. A vida humana parece não valer mais nada por aqui. Ela lembra Renato Russo e sua famosa indagação, “que país é este?”.

O liquidificador mistura o detox, cuja receita ela pegou na revista sobre saúde e boa forma, enquanto o cérebro se indaga, "podemos mesmo ainda ter alguma qualidade de vida?"

Tenta pensar que está segura, que Deus está na frente, e então o melhor é se arrumar, passar um batom na boca e fingir que é feliz. Ou melhor, se sentir feliz mesmo, ainda que seja um desafio. “O pensamento determina a emoção”, lembra a frase de sua terapeuta. Decide seguir este mote até que outra notícia ruim chegue aos seus ouvidos. Meu Deus, quanto susto se leva, basta acordar. Aliás nem precisa, até mesmo dormindo a gente já sonha desgraça. Violência, tiros, balas perdidas e mortes precoces fazem parte de nossa rotina. O que se vive, no Brasil, é uma guerra que teima em se travestir de “casos pontuais”. “Não”, ela conclui, “pontual hoje é sair e chegar em casa inteiro.”

Escolhe um vestido florido pra combinar com o sol que frita ovos no asfalto lá fora. Sem manga, claro, e é com os braços de fora que ela caminha em direção ao ponto do ônibus, cuja passagem não demora a aumentar, visto que ano novo é tempo de reajustes de tarifas e pagamentos de impostos. Mesmo assim olha a criança no colo de sua mãe e sorri pra ela, e ela sorri de volta, e a esperança perpassa o bafo da fervente atmosfera. O ônibus chega, ela encontra lugar ao lado de um rapaz jovem e moreno. Tenta olhar seu rosto disfarçadamente, mas não consegue e é melhor não insistir, o cara pode ser um tarado.

Salta no Centro e pega as barcas para o Rio. Aumento brutal da passagem, quase 30%. Não, não se revolte, é preciso contribuir para a recuperação do nosso estado. Vamos lá, cada dia é um presente divino, não esqueça. Gratidão e fé. O homem é mau, mas Deus existe. E assim é que se continua a jornada.

Depois de um dia exaustivo no escritório de advocacia que mais parece um gabinete de juiz, tantos são os processos empilhados em cima das mesas, nos armários de aço, no chão, no meio do caminho, volta para casa desejando um banho, um chá e mais um capítulo da série que está acompanhando. O sol se põe atrás das montanhas cariocas, e o crepúsculo é lindo visto da praia. De dentro do ônibus se atreve a pegar o celular e capturar um instante desse momento diário que nos é ofertado com tanta generosidade pelo pai que jamais desiste de seus filhos. Ela se sente grata e recompensada pelo esforço para permanecer fiel à crença de que no fim tudo dá certo.

Chega em casa, um cãozinho parte pro seu colo, agitado de tanta felicidade. Ela cai no chão e os dois rolam pela sala em meio a abraços, amassos e beijos. Toma um banho tentado cantar louvores e esquecer tragédias, faz uma tapioca e se enfia na cama. Lembra as famílias enlutadas de hoje em suas orações. Pede paz e justiça. A noite avança e é hora de dormir. Amanhã haverá outros mortos para chorar. Quem sabe não será ela mesma? Só Deus sabe. O estado não tem nada a dizer além de que “está investigando”. Uma viatura foi enviada para reforço naquela área. Fim.

 


 
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